sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Ó Cruz, única esperança!

O culto oito vezes secular à “Santíssima e Vera Cruz” de Caravaca lembra-nos que o Sagrado Madeiro não é símbolo de morte e de derrota, mas sim anúncio de salvação e caminho seguro para a glória celeste.
Corria o ano de 1232. A Península Ibérica encontrava-se ainda em plena Reconquista, dividida em vários reinos. Sancho II governava em Portugal; Jaime I, em Aragão; e Fernando III, o Rei Santo, em Leão e Castela.
Do lado muçulmano, o declínio da dinastia Almóada fora aproveitado por Ibn-Hud para se apossar de uma ampla região do sul da Espanha e se fazer proclamar emir em Múrcia. A cidade de Valência, entretanto, era ainda governada por Ceyt Abu-Ceyt, descendente daquela dinastia. Sob o domínio deste último encontrava-se a fortaleza de Caravaca, em cujo alcácer, segundo a tradição histórica local, deu-se no dia 3 de maio desse ano, “um acontecimento maravilhoso e único”.
Acompanhemos o relato que dele nos fazem as antigas crônicas.
Dando ocupação aos prisioneiros
Encontrando-se naquela fortaleza, e visando tirar melhor proveito dos prisioneiros que lá havia, o governador Abu-Ceyt começou a interrogá-los sobre a respectiva profissão e ocupá-los segundo as respectivas aptidões. Quando chegou a vez do padre Ginés Pérez Chirinos, o governador perguntou-lhe:
— E tu, que sabes fazer?
— Eu sei celebrar Missa.
— O que significa isso? — replicou Abu-Ceyt.
Padre Ginés explicou-lhe ser o mais alto e principal encargo do sacerdote cristão celebrar a Eucaristia, instituída por Nosso Senhor Jesus Cristo na Última Ceia. Durante a mesma, esclareceu, o pão e o vinho passam a ser o Corpo e o Sangue do Deus verdadeiro.
— Não acredito! — replicou-lhe incrédulo. Mostra-me como isso acontece.
— Se me deres quanto preciso para celebrar Missa, eu o farei — redarguiu o sacerdote.
Abu-Ceyt aquiesceu. Feita a lista dos paramentos e alfaias litúrgicas necessários, o alcaide mandou logo providenciá-los.
Milagrosa aparição da Cruz
No dia seguinte, o padre Chirinos rezou bem de manhã seu breviário. Logo após, dirigiu-se ao salão principal da fortaleza, onde fez cuidadosamente todos os preparativos para a Eucaristia e vestiu os paramentos.
Já seguia rumo ao improvisado altar para dar início à celebração quando percebeu a ausência do crucifixo. Sem conseguir explicar como pudera esquecê-lo, disse consternado ao governador:
— Senhor, falta-me uma das coisas mais importantes para celebrar a Missa: a Cruz.
— Mas... não é isso que está em cima da mesa? — perguntou o alcaide apontando para o altar.
O sacerdote voltou-se e viu, admirado, uma Cruz patriarcal de 17cm de altura com duas hastes transversais, de 7 e 10cm. Transido de devoção, ajoelhou-se, osculou-a e deu início à Santa Missa, terminada a qual, Abu-Ceyt pediu para ser batizado.
Oito séculos de devoção
A Cruz de Caravaca é um lignum crucis — fragmento da verdadeira Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo — recolhido no interior de um belo relicário. Segundo antiga tradição, este era usado como cruz peitoral pelo Patriarca de Jerusalém, Dom Roberto, empossado como Bispo da Cidade Santa no ano de 1099. Daí o seu singular formato, com duas hastes transversais, símbolo do poder patriarcal.
Sejam quais forem as circunstâncias em que ela chegou a Caravaca, não se pode duvidar de sua presença na cidade em pleno século XIII. Já no ano de 1285 sua silhueta é representada no escudo da municipalidade, e datam da mesma época os primeiros relatos orais do miraculoso aparecimento.
Desde os primórdios, a devoção à “Santíssima e Vera Cruz” de Caravaca difundiu-se por todo o mundo cristão. Da Espanha medieval — onde logo adquire fama de milagrosa protetora na tormentosa vida fronteiriça— passou para os outros países europeus e estendeu-se depois às nações americanas.
A partir de 1392 — quando Clemente VII concede as primeiras indulgências —, os Papas têm outorgado regularmente privilégios aos peregrinos que acorram a venerar a sagrada relíquia. Em 1736, é-lhe reconhecido pela Igreja o culto de latria.
Ao longo desses quase oito séculos, desenvolveu-se também um rico e variado ritual em torno dela: bênção das flores e dos campos, uma peculiar bênção da água e do vinho, além de uma espécie de romaria durante a qual a sagrada relíquia visita as casas dos enfermos impedidos de comparecer à igreja.
Em fins do século XV, a pequena capela do alcácer de Caravaca foi acrescida de uma nave de maiores proporções. E, em 1617, iniciou-se a construção da atual Basílica-Santuário.

Também o relicário que contém o lignum crucis tem passado por sucessivas reformas, sendo o atual uma maravilhosa obra de ourivesaria, ornada com pedras preciosas.
Revista Arautos do Evangelho n.105 set 2010