segunda-feira, 10 de junho de 2013

O conde mau e os dois amigos

Esta história teve lugar há mais de dezesseis séculos. Eram dias de grande festa em todas as cidades e aldeias da antiga Armênia, e havia razão de sobra para tantas músicas e comemorações: o imperador Tiridates havia se convertido ao Cristianismo.
A maior parte da população do país já era de fato cristã, e a notícia trouxe júbilo a todos. A todos? Não... Na verdade, houve também os que não a receberam com tanta alegria.
Um desses era o nobre Kammo. É difícil traduzir os títulos orientais da época, mas ele seria mais ou menos o que hoje chamamos um conde. Por facilidade de expressão, vamos nos referir a ele como o conde Kammo. Sua autoridade estendia-se numa pequena região situada às margens do lago Servan, onde ele possuía um bem guarnecido castelo construído sobre uma colina.
Pagão e seguidor de Zoroastro desde a infância, o conde Kammo recebeu de mau-grado a notícia. Não ousou enfrentar a autoridade imperial, mas em seu íntimo concebeu a intenção de dificultar ao máximo a vida dos cristãos. Após alguns dias, escolheu seu alvo: um honrado comerciante da cidade, chamado Vardenis, cristão fervoroso e braço direito do pároco local. O malvado conde conseguiu falsas testemunhas para o acusarem de um crime que não cometera, e assim, o pobre homem foi levado a julgamento.
Como ao próprio conde cabia o exercício da justiça naquela parte do reino, foi rápido e fácil condenar Vardenis. Numa triste tarde de outono, no salão do castelo, desolado ele ouviu sua condenação à morte. No entanto, ousou fazer um último pedido ao juiz iníquo.
— Por favor, ó conde, faço-vos um derradeiro pedido: visitar pela última vez, antes de ser executado, meus velhos pais que vivem na distante aldeia de Tumanyan.
O conde irritou-se, pois julgou tratar-se de mera artimanha. Quem poderia garantir que o condenado não aproveitaria a ocasião para fugir do país e nunca mais voltar? No entanto, este assegurou:
— Podeis acreditar em mim, ó conde. Ao viajar, deixarei em meu lugar um refém, como garantia de minha volta. Bem sabeis que não tenho parentes próximos aqui, mas tenho um grande amigo chamado Talin e estou certo de que, por amor a Deus, ele consentirá em fazer-me este supremo favor.
O mau conde riu, pois não acreditava existir alguém néscio a ponto de colocar-se voluntariamente em tal situação de perigo. Porém, no intuito de provar a ingenuidade de um cristão, autorizou que, sob forte guarda armada, Vardenis fosse ter com seu amigo. Qual não foi sua surpresa quando, horas depois, retornava ao castelo o infeliz condenado, em companhia de seu fiel amigo Talin.
Contrariado, o conde mostrou-se inclemente:
— Oh! percebo que há entre os cristãos gente suficientemente tola para se expor a isso. Pois bem, podes partir, mas se dentro de sete dias não te apresentares de volta até o pôr-do-sol, saibas: a cabeça de teu amigo Talin irá rolar!
Com um grande abraço, despediram-se os amigos, e Vardenis partiu a cavalo rumo à distante Tumanyan. Acorrentado em um úmido calabouço, Talin ficou esperando passarem-se os dias e as horas.
Na verdade, o conde Kammo tinha razões maquiavélicas para autorizar o sentenciado a empreender essa viagem. Ele estava seguro de que Vardenis não voltaria. Talin seria fatalmente executado em seu lugar, e isso só poderia causar desprestígio aos cristãos, provando que, por mais que em suas igrejas se pregasse o amor ao próximo, na hora do perigo um cristão fugia para salvar sua própria pele, como faria qualquer pagão. E tratando-se de um personagem tão conhecido, amigo pessoal e homem de confiança do pároco, o escândalo seria ainda maior! O conde esfregava as mãos com maligna alegria, enquanto aguardava o fatídico dia da execução.
Passaram-se os dias e a notícia se espalhou por toda aquela região da Armênia. Vardenis voltaria ou não? Chegou por fim o temido sétimo dia, e o sol declinava perigosamente no horizonte. O infeliz Talin já fora conduzido ao pátio das execuções, com as mãos amarradas às costas. O sinistro carrasco esperava em um canto, munido de seu enorme machado. E o conde, satisfeito, a tudo assistia de uma poltrona posta em local privilegiado.
Justamente quando o sol estava a ponto de esconder-se atrás das montanhas, ouvem-se gritos, um grande vozerio e um tropel de cavalo do lado de fora do castelo. Era Vardenis que retornava!
Empoeirado e ofegante, ele entra correndo no grande pátio. Ao vê-lo, Talin protesta:
— Por que voltaste, ó insensato? Eu já tinha oferecido minha vida pela tua! Bem sabes que o fiz de coração, e dava meu sacrifício por bem pago!
— Nunca, meu amigo! A ti, que és meu irmão na fé e a quem tanto estimo, jamais abandonaria a uma tão desgraçada sorte!
Continuavam ainda a discutir quando, de súbito, um brado os interrompeu. Era a forte voz de Kammo, que com firmeza dizia:
— Basta! Há dias atrás, emiti uma sentença de morte. Agora, diante do que vejo, devo pronunciar mais uma!
Fez-se um grande silêncio e todos, espantados, tinham os olhos cravados na enigmática figura do poderoso conde. E ele continuou:
— Hoje, decreto pena de morte à... à dureza de meu coração! Em toda a minha vida, nunca ousei imaginar que pudesse haver tão sincera amizade! Assim, perdôo aos dois, com a condição de que — dom magnífico! — me aceitem como partícipe dessa maravilhosa amizade!
Os amigos entreolharam-se, e Talin tomou a palavra:
— Nobre conde, entendo o que sentis. No entanto, previno-vos de que nossa amizade é fruto do Batismo, o qual nos mune do celeste auxílio para chegarmos a tão alto grau de dedicação ao próximo. Se, pois, quereis realmente participar desta autêntica amizade, fazei-vos batizar, e sendo cristão, sabereis o que é ter verdadeiros amigos!
E assim sucedeu. Convertido pelo magnífico exemplo dos dois amigos, dias depois o conde Kammo fez-se cristão em pública e concorridíssima cerimônia. Desta maneira ele, de cruel tirano, tornou-se um dos mais benéficos e justos nobres que a Armênia jamais teve…