quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

O mistério da Estrela de Belém

Nas Sagradas Escrituras vemos Deus muitas vezes comunicar-se aos homens por meio de sinais na natureza: a brisa da tarde no Paraíso, o arco-íris após o dilúvio, a sarça ardente, a diáfana nuvem de Santo Elias etc. E em seu próprio nascimento, Ele quis usar de um sinal no céu: a Estrela de Belém. Esse fato nos é narrado apenas por um dos evangelistas: São Mateus.
Na verdade, naquela época acreditava- se que o nascimento de pessoas importantes estava relacionado com certos movimentos dos astros celestes.
Assim, dizia-se que Alexandre o Grande, Júlio César, Augusto e até filósofos como Platão tiveram a sua estrela, aparecida no céu quando eles vieram ao mundo. Muito se tem comentado a respeito da estrela surgida aos três Reis Magos , guiando-os até o local bendito em que o Salvador haveria de nascer.
E não faltaram homens de ciência tentando encontrar uma explicação natural para esse evento sobrenatural, centro da história humana. Não temos a pretensão de fazer um compêndio científico a respeito, mas não deixa de ter certo interesse conhecer, ainda que de modo sumário, as principais tentativas de solucionar esse enigma. Uma das primeiras teorias levantadas era que esse astro teria sido o planeta Vênus. Pois a cada 19 meses, pouco antes do nascer do Sol, ele aparece dez vezes mais claro que a mais brilhante das estrelas: a Sírius.
Mas esse já era, então, um fenômeno assaz conhecido pelos povos do oriente e, portanto, para os Reis Magos nada teria de extraordinário.
Outra hipótese foi levantada por um astrônomo reconhecido nos meios científicos do século XVI: Johannes Kepler. Tentou ele demonstrar com seus longos estudos, que esse astro não era apenas um, mas a conjunção de dois planetas: Júpiter e Saturno. Quando eles se sobrepõem, somam-se os respectivos brilhos. Um fenômeno desses foi por ele observado em 1604 e podia produzir um efeito semelhante ao que nos conta a Bíblia. A partir daí, Kepler defendeu sua teoria.
Mas existem três problemas ao fazer essa afirmação: primeiro, essa conjunção dura apenas algumas horas, e a estrela que apareceu para os Reis Magos foi visível por eles durante semanas; segundo, Júpiter e Saturno nunca se fundem completamente numa única estrela. Mesmo a olho nu, seriam sempre visíveis dois corpos; terceiro, ao menos que a data do nascimento do Menino Jesus esteja muito mal calculada, tal conjunção só poderia ter lugar três anos depois.
Há quem diga que a estrela foi, na verdade, um meteoro especialmente brilhante. Mas um meteoro só pode durar alguns segundos e seria muito forçado crermos que esses poucos segundos de visibilidade bastariam para guiar os reis magos numa viagem através de quilômetros em um deserto inabitável, e que ao chegarem em Belém, apareceu um outro meteoro semelhante, indicando o local exato onde estava o Menino-Deus.
Orígenes, Padre da Igreja nascido em Alexandria, Egito, chegou a acreditar ser a Estrela de Belém um cometa. Pois alguns cometas chegam a ser centenas de vezes maiores que a Terra, e sua luz pode dominar o firmamento durante semanas.
Além disso, alguns sustentam que São Mateus teria ficado tão impressionado com o cometa Halley, visto nos céus em 66 d.C. ou pelo testemunho dos mais antigos cristãos que o tinham visto em 12 a.C., que o incluiu na história. Outros afirmam ter sido o próprio Halley, a Estrela de Belém.
Mas devemos reconhecer que as duas datas citadas estão muito afastadas do nascimento de Jesus, para serem unidas a ele. E segundo os dados catalogados, não há menção de nenhum outro cometa que tenha sido visto a olho nu entre os anos 7 a.C e 1 d.C., período no qual se aceita ter nascido o Messias. Além disso, é corrente serem os cometas na Antiguidade anunciadores de desgraças e não de bênçãos. Uma última hipótese dita científica é a que tenha sido uma "Nova".
Existem certas estrelas que explodem de tal forma que sua luz aumenta centenas de vezes em poucas horas. São as chamadas "Novas", ou "Supernovas", dependendo da intensidade da explosão. Calcula-se que a cada mil anos, aproximadamente, uma estrela se transforme em "Supernova", sendo este fenômeno visível durante vários meses, até mesmo durante o dia.
Mas já não se crê nessa hipótese, pois tais explosões, devido à sua magnitude mesmo depois de séculos deixam traços inconfundíveis no espaço, como manchas estelares etc. Entretanto, até hoje não se descobriu nenhum indício de tal fenômeno ocorrido nesse período histórico.
Embora várias tentativas de explicação científica não tenham dado respostas plenamente satisfatórias ao mistério da Estrela de Belém, isso em nada diminui o mérito dos esforçados estudiosos que com reta intenção buscam desvendar os enigmas da natureza. Mas deixando essas hipóteses de lado por um momento, voltemos nossos olhos à outro aspecto da questão: o campo teológico, onde se considera que essa estrela era a realização da profecia do Antigo Testamento: "Uma estrela avança de Jacó, um cetro se levanta de Israel" (Num 24,17).
Alguns teólogos defendem que São Mateus fez uma interpretação das tradições da época, referindo-se ao astro não como uma estrela no sentido literal, mas como símbolo do nascimento de um personagem importante. Mas São Tomás, o Doutor Angélico, já havia pensado nisso em sua época e resolveu a questão na Suma Teológica (III, q. 36, a.7), usando cinco argumentos tirados de São João Crisóstomo:
1º. Esta estrela seguiu um caminho de norte ao sul, o que não é comum ao geral das estrelas.
2º. Ela aparecia não só de noite, mas também durante o dia.
3º. Algumas vezes ela aparecia e outras vezes se ocultava.
4º. Não tinha um movimento contínuo: andava quando era preciso que os magos caminhassem, e se detinha quando eles deviam se deter, como a coluna de nuvens no deserto.
5º. A estrela mostrou o parto da Virgem não só permanecendo no alto, mas também descendo, pois não podia indicar claramente a casa se não estivesse próxima da terra.
Mas se esse astro não foi propriamente uma estrela do céu, o que era ela? Segundo o próprio São Tomás, ainda citando o Crisóstomo, poderia ser:
1º. O Espírito Santo, assim como ele apareceu em forma de pomba sobre Nosso Senhor em Seu batismo, também apareceu aos magos em forma de estrela.
2º. Um anjo, o mesmo que apareceu aos pastores, apareceu aos reis magos em forma de estrela.
3º. Uma espécie de estrela criada à parte das outras, não no céu mas na atmosfera próxima à terra, e que se movia segundo a vontade de Deus.

 Como solução ao mistério da Estrela de Belém, São Tomás acreditava ser mais provável e correta esta última alternativa. De qualquer forma, temos a certeza de que essa estrela continua a brilhar não só no alto das árvores de Natal, mas principalmente na alma de cada cristão ao comemorar a Luz nascida em Belém para iluminar os caminhos da humanidade. 
Revista Arautos do Evangelho, Dez/2007

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Os ciclos litúrgicos dominicais

Numerosos são os frutos que pode o fiel tirar da frequente assistência à Santa Missa. Dentre eles, é amiúde esquecido um de suma importância: aproveitar a imensa riqueza das Sagradas Escrituras.

A participação no Banquete Eucarístico, infinito obséquio de Deus para os homens, não pode ser vista como mera rotina ou obrigação do fiel nos dias de preceito. Pois, sendo Deus a Sabedoria em substância, tudo quanto Ele faz obedece a um superior desígnio em ordem à sua maior glória, à melhor ordenação das criaturas e ao benefício dos homens.
Consideradas sob esse prisma, as obrigações que a Igreja nos impõe — a primeira das quais é participar da Missa aos domingos e dias santos de guarda — tomam um brilho todo especial, revelando as maravilhas que durante o Santo Sacrifício nos são oferecidas às mancheias.
De outro lado, apreciar melhor o sentido e a profundidade das diversas partes da Celebração Eucarística muito nos ajudará a fazer com que ela ocupe em nossas agitadas vidas seu merecido lugar: o do mais importante acontecimento da semana, ou do dia.
Ora, se no momento da Comunhão o fiel encontra a mais íntima união possível com seu Redentor, presente nas Sagradas Espécies, não podemos esquecer que Cristo está presente também “na sua palavra, pois é Ele quem fala ao ser lida na Igreja a Sagrada Escritura”.1
Deslumbrados pela inefável graça de receber em nosso coração o Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Nosso Senhor, corremos o risco de subestimar o imenso valor da Liturgia da Palavra. Por outro lado, acompanhar com devoção a bela sucessão de leituras que esta nos apresenta pode nos dar uma visão de conjunto harmoniosa, e com profundo sentido teológico, de toda a Revelação.
Como e com que intuito foi composto este autêntico florilégio bíblico que se desenvolve progressivamente ao longo dos anos? Comecemos com um pouco de História...
A Celebração Eucarística nos tempos apostólicos
Desde tempo imemorial, a Igreja se reunia para celebrar em comunidade a “fração do pão” (At 2, 42.46; 20, 7.11), isto é, a Eucaristia, sempre acompanhada da leitura da Palavra de Deus. Fazia-o, por certo, ao modo herdado da Sinagoga (cf. Lc 4, 16-21), mas, paulatinamente, aos livros do Antigo Testamento foram se unindo os do Novo. E não custa imaginar a avidez dos primeiros cristãos por receber esses testemunhos que lhes narravam as obras e os ensinamentos d’Aquele que “passou fazendo o bem” (At 10, 38) e os instruíam a respeito do modo de viver cristão, tão diferente do herdado dos pagãos ou da decadente religião judaica.
A essência da celebração dominical era naqueles primórdios a mesma de nossos dias, tanto no relativo à Palavra de Deus quanto à renovação do Sacrifício do Calvário. Assim o atesta, por exemplo, São Justino, já no século II:

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

A grande misericórdia de Deus

"Pode uma mãe esquecer-se do seu filho e não ter piedade do fruto de suas entranhas? Pois bem, mesmo que isto acontecesse, Eu não te esquecerei" (Is 49, 15).
Deus é Pai. Nessas três palavras está contida toda a grandeza da divina misericórdia. E, para ser mais preciso, devo acrescentar: Deus não é apenas um pai, mas um pai e uma mãe ao mesmo tempo.

Ninguém é pai ou mãe como Deus
O amor paterno é aquele que se aplica sobre quem não existe ainda, desejando ardentemente dar- -lhe a vida. É o amor que envolve a criança com sua força, depois de tê- -la gerado; o amor que vela a todos os instantes do dia e da noite, previne todos os perigos, apoia todos os pequenos passos desse ser frágil que tenta andar, dirige-o, suporta-o, faz-se pequeno com esse pequeno, à espera da hora de fazer-se heroico e de imolar-se, se for preciso; o amor que às vezes pune, muitas vezes mais perdoa, e não pune senão para fazer merecer o perdão; o amor que ama até o fim e que, menosprezado, insultado, amaldiçoado, acompanha, apesar de tudo, até o extremo e com um olhar de terno apego, oSagrado Coração de Jesus..jpgfilho mau e culpado; o amor, enfim - último traço que remata a pintura - que esquece sua honra de pai ultrajado, seus direitos profanados pela mais negra ingratidão, pela mais indigna conduta, para correr, ele, o ofendido, rumo ao ofensor, se vê de longe o filho pródigo voltando para ele arrependido.

Eis o amor paterno, tal qual a natureza o dá aos verdadeiros corações de pai nesta Terra.

Mas Deus tem sua maneira de ser pai e mãe ao mesmo tempo, que excede infinitamente tudo isso. Nemo tam pater, tam mater nemo: ninguém é pai, ninguém é mãe como Ele. E Ele mesmo nos diz, por meio da mais brilhante voz dos profetas do Antigo Testamento, Isaías: "Pode uma mãe esquecer-se do seu filho e não ter piedade do fruto de suas entranhas? Pois bem, mesmo que isto acontecesse, Eu não te esquecerei" (Is 49, 15).
Amor sob a lei do temor e sob a lei do amor
Nada é mais instrutivo, sob este ponto de vista, que a história do profeta Jonas. Incumbido por Deus de fazer aos ninivitas o anúncio dos castigos divinos, o profeta primeiro se esquiva de sua missão e procura fugir para o ocidente dos mares, quando deveria partir para o oriente. Conduzido à força a Nínive, pela vontade do Alto, ele começa a percorrer as ruas da grande cidade, gritando com força e convicção: "Daqui a quarenta dias Nínive será destruída" (Jn 3,4). Mas o Senhor pretendia destruir essa cidade somente se ela perseverasse em sua malícia.

Ora, os ninivitas fizeram penitência sob o cilício e a cinza. Deus então os perdoou, e isso causou ao profeta grande cólera: "Eu bem o sabia" - exclama ele - "e por isso eu queria fugir para Társis. Eu sabia bem que Vós me faríeis ameaçar em vão e que pouparíeis esse povo. Porque Vós sois um Deus clemente, misericordioso, paciente, de uma compaixão extrema. Agora, Senhor, tirai-me a vida, porque é-me penoso viver depois do que acabo de ver" (Jn 4, 1-3).
"Pensas tu que é justa tua cólera?" (Jn 4,4) - responde-lhe simplesmente o Eterno. E Ele conduz Jonas para fora da cidade, do lado do nascente. Jonas ali se instala sob um espesso feixe de hera, miraculosamente pre parada por Deus para resguardá- lo dos raios abrasadores do Sol. Mas, durante a noite o Senhor faz secar a planta protetora, de maneira que o Sol, tornando a subir ao céu de manhã, dardeja seus raios sobre a cabeça do profeta. Grande aflição deste, que de novo deseja a morte. "Ah, bem!" - diz-lhe o Senhor - "tu te afliges e te irritas pela perda de uma planta que não plantaste, nem cultivaste, e Eu faria perecer toda esta multidão de homens de Nínive dos quais sou o Criador e o pai?" (Jn 4,10).
Eis como, sob a Lei do temor, Deus entendia seu papel de pai. Mas, sob a nova Lei, seu amor de Pai, sua misericórdia, vão revestir-se de uma forma capaz de lançar nossos espíritos e nossos corações em maravilhamentos sem fim. Ele irá - mistério adorável e três vezes incompreensível - ao ponto de abafar, se podemos dizer assim, o amor sem nome que une-O no Céu a seu Verbo, a seu Filho, e entregá-Lo a nós como vítima, para que, em seu sangue, se opere nossa Redenção.

Na Nova Aliança, Deus nos enche de benefícios e graças
A Encarnação, a Redenção, esses prodígios de amor do qual - diz- nos o Apóstolo - ninguém nesta terra jamais saberá toda a altura, toda a largura, toda a profundidade, eis a verdadeira medida da misericórdia de Deus por nós! Será demais, então, repetir com o Salmista que grande é a misericórdia divina, grande a multidão de suas compaixões? 

1 - Grande, ela o é no espaço. Ela se estende a todos, não exclui ninguém. "Senhor" - diz o Salmista - "Senhor, vossa bondade chega até os céus" (Sl 35,6); "acima dos céus se eleva a vossa misericórdia" (Sl 107,5). Ora, da mesma forma que a abóbada celeste nos envolve a todos, e de todas as partes, assim é a divina misericórdia.

2 - Grande, ela o é no tempo. Salvo razões muito especiais, ela deixa aos homens, aos pecadores, o tempo de reconhecer sua culpa, de se converter, de se resgatar: "Eu não me comprazo com a morte do pecador, mas antes com a sua conversão, de modo que tenha a vida" (Ez 33,11).

3 - Enfim, falando como o reiprofeta, grande é a misericórdia divina na multidão de suas operações, de suas comiserações. Que chuva, que dilúvio de graças naturais e sobrenaturais ela derrama cada dia sobre o menor de nós! "A filosofia observa que, em nossa existência, o primeiro momento não acarreta necessariamente o segundo, e que a mão de Deus, por uma criação contínua, precisa nos manter incessantemente sobre este abismo do nada, do qual saímos e para o qual tendemos a retornar" (Mgr. Le Camus, Théologie populaire de N.S.J.C., 2ª Confér., Dieu).

Cada novo instante acrescentado à nossa vida, cada batida de nosso coração é, portanto, um benefício da misericordiosa Providência do Criador. Apesar do repouso no qual Ele entrou no sétimo dia, depois da Criação, sua misericórdia está sem cessar em atividade em torno de nós. Quem contará essas maravilhosas atenções e operações da misericórdia em relação a nós? 

Ora, esses benefícios naturais, por mais abundantes que sejam, são talvez infinitamente menos numerosos que os socorros sobrenaturais prodigalizados à nossa alma: Graças atuais de luz, de força, de resignação, de compunção, que sei eu? Quem dirá o que foi preciso de graças para povoar o Céu de todos os santos que lá reinam com Deus, dos quais um grande número é de indignos pecadores? Para um só pecador - seja ele Santo Agostinho, ou seja qualquer um de nós - quem dirá o oceano de Graças com o qual Deus o inunda para reconduzi-lo a Si? 

Oh! À vista desta grande, desta grandíssima misericórdia do Senhor, não hesiteis mais, almas pecadoras, ide até Ele com confiança. Quaisquer que sejam vossos pecados, mesmo vossos crimes, por mais arraigados que sejam vossos hábitos culposos, por mais desesperadoras que sejam vossas misérias, vinde, atirai tudo isso, e atirai-vos vós mesmos, nas mãos da divina misericórdia. 
(Traduzido, com adaptações, de L'Ami du Clergé, 23/01/1902, p. 68-69). - (Revista Arautos do Evangelho, Nov/2009, n. 95, p. 24-25)

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Cartas das trincheiras

Um volume publicado por ocasião do centenário da Primeira Guerra Mundial reproduz eloquentes testemunhos de intervenções de Santa Teresinha em favor de soldados que a ela recorreram.
No dilúvio de fogo e ferro que assolou a Europa entre os anos 1914 e 1918 não faltaram comovedores episódios de Fé. E entre eles cabe mencionar a inesperada torrente de veneração dos poilus1 para com uma humilde freira falecida em odor de santidade em 1897: Sor Teresa do Menino Jesus e da Sagrada Face.
O mosteiro carmelitano de Lisieux, onde ela fez o holocausto de sua vida ao amor misericordioso de Deus, possui mais de dois mil dossiês contendo cartas autógrafas recebidas no decorrer do conflito, bem como condecorações, medalhas, balas, capacetes e obuses transformados em ex-votos.
Comemorando o primeiro centenário da deflagração dessa guerra, uma prestigiosa editora francesa lançou, em colaboração com o mosteiro, um volume de 203 páginas2 contendo uma seleção de 75 dessas cartas, muito pouco conhecidas. Reproduzimos abaixo algumas delas.
Parti sem me confessar
Sou um favorecido por Teresinha do Menino Jesus e deposito nela grande confiança. Visitei seu túmulo em maio de 1914 e voltei muito impressionado. Entretanto, tendo sido declarada a guerra, recusei-me a atender aos instantes pedidos de minha mulher e parti sem me confessar. O respeito humano impediu-me de cumprir meu dever de católico.
Estava afastado da Igreja desde minha Primeira Comunhão. Todavia, aceitei uma relíquia e uma pequena imagem da Irmãzinha, e recorria instintivamente a ela cada vez que me encontrava em perigo nos combates. E ela me protegia, e também aos meus camaradas, pois nunca vi nenhum deles morto ou ferido perto de mim.
Em meados de setembro, estávamos nas trincheiras do Gotha, perto de Reims, numa situação difícil, pois a artilharia não cessava de troar. Pensando com muita tristeza em minha pequena família, eu rezava: “Minha Irmã Teresa, eu vos suplico, devolvei-me à minha esposa e aos meus filhos, e prometo ir visitar vosso túmulo logo depois de retornar a minha terra”.
Mal terminara essa oração, vi abrir-se uma nuvem e aparecer no céu azul o rosto da santa. Julgava-me vítima de uma alucinação. Esfreguei várias vezes os olhos, olhando de novo a visão, mas não podia ter dúvida alguma, pois sua fisionomia se mostrava cada vez mais clara e resplandecente. Pude contemplá-la assim por cerca de dois minutos. Observei sobretudo seus belos olhos, elevados ao céu como para rezar.
Desde então sempre fui corajoso; não me sentia mais sozinho. Tinha também a mais firme esperança de reencontrar minha família e tomei a inabalável resolução de voltar ao Deus da minha infância.
De fato, pouco tempo depois, por motivo de doença, fui retirado do front e conduzido ao hospital; e quando ali alguém perguntou quem queria comungar, não tive medo de manifestar meu desejo.3
“Devo isto à minha pequena Irmã Teresa!”
Desde o início da guerra, tenho comigo uma relíquia da Irmã Teresa. Eis o que me aconteceu. No último dia de batalha na região da Marne, em setembro, tínhamos apenas oito canhões, contra 25 do inimigo. Nesse momento crítico, acabou-se nossa munição e, na precipitação para avançar outra bateria que vinha substituir a nossa, caí e meu canhão passou sobre minhas duas pernas. Elas deveriam ter sido completamente esmagadas, pois cada canhão pesa mais de duas toneladas!
Meus queridos companheiros de armas acorreram para me transportar. Qual não foi, porém, seu espanto ao verem-me levantar sem dificuldade alguma! “Milagre! Milagre!”, gritaram todos. Respondi-lhes logo, com o coração transbordante de gratidão: “Devo isto à minha pequena Irmã Teresa!”. Ato contínuo, tirei do bolso um lápis branco e escrevi em grandes letras no meu canhão: BATERIA IRMÃ TERESA DO MENINO JESUS.
E desde então, quando chove e a inscrição se apaga, eu a reescrevo o mais rápido possível. Tenho uma confiança ilimitada na proteção desta santa.4
Um estilhaço de granada em pleno peito
Sob juramento, afirmo dever a vida à Irmã Teresa do Menino Jesus. Em 16 de março de 1916, na véspera de partir pela segunda vez para o front, um de meus camaradas deu-me uma imagem da santinha, dizendo-me: “Parece que ela obteve já muitos milagres em favor dos soldados, e nos protege”. Até então, eu não a conhecia, mas desde esse dia não deixei de invocá-la todas as noites, rezando um Pai-nosso e uma Ave-Maria em sua homenagem.
Pouco depois, em 30 de abril, participei da sangrenta batalha de Mort-Homme, em Verdun. No terrível combate, sem parar de lutar, eu rezava a Sor Teresa. Recorria a ela, não por medo, pois nunca tive medo, mas lhe pedia que sustentasse minha coragem, coisa bem necessária naquele trágico momento! De repente, na confusão do combate, a 20 metros do inimigo, recebi em pleno peito um estilhaço de granada. Desmaiei e, quando recobrei os sentidos, a batalha continuava no auge. Exaurido e perdendo sangue, não tinha forças para me arrastar para fora. Mas, lembrando-me de minha santa Protetora, gritei: “Irmã Teresa do Menino Jesus, não me abandone!”.
E ela ouviu minha súplica, pois, sob as rajadas das metralhadoras, logo chegaram os padioleiros e me transportaram ao primeiro posto de socorro. Lá, julgando grave o meu caso, um valente capelão administrou-me, ao som dos canhões, a Extrema Unção. Apesar dos sofrimentos, eu me sentia feliz e pensava, com gratidão, que esse socorro religioso eu o devia à Irmã Teresa. Eu tinha tanta confiança na querida santinha que, uma vez ao abrigo das balas, pedi-lhe um segundo milagre: o de curar-me e me guiar até a sua sepultura, em Lisieux. E fui atendido. [...]
Agora sinto-me disposto a todos os sacrifícios, todos os sofrimentos, pois a Santa fez-me compreender que assim expiarei meus pecados e ademais, que Jesus Cristo padeceu muito mais por nós.5
                                                                 * * *
Passou-se um século exato desde o início da terrível guerra e a devoção à Santa da Pequena Via não tem feito senão crescer e expandir-se pelo mundo todo. Pio XI a canonizou em 1925, apenas 28 anos depois de sua morte. E em 1997 São João Paulo II a proclamou Doutora da Igreja.
Fiel à sua promessa de passar o Céu fazendo bem à Terra, tem ela favorecido especialmente as novas gerações, tão necessitadas de ajuda espiritual em razão da sua marcante debilidade.
 1 Termo usado para designar os combatentes franceses da Primeira Guerra Mundial, que significa, literalmente, “peludo”. Sua origem se remonta à época de Napoleão, quando se incorporaram ao exército grande número de soldados vindos do campo, que não tinham o costume de se barbear.
2 Nous les Poilus. Plus forte que l’acier – Lettres des tranchées à Thérèse de Lisieux. Paris: Du Cerf, 2014.
3 Carta de Auguste Cousinard, op. cit., p.17-19.
4 Carta de Paul Dugast, op. cit., p.20-21. Carta de J. Lallement, op. cit., p.64-65.

5 Carta de J. Lallement, op. cit., p 64-65.

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Em graça concebida

Já no primeiro instante de sua concepção, Maria Santíssima foi enriquecida com uma plenitude de graças superior à de todos os Anjos e Santos reunidos.
Luz tênue, igreja praticamente vazia, pouco ruído. É fim de tarde na cidade de Granada. Num confessionário, um sacerdote reza seu Breviário, enquanto permanece à disposição de qualquer fiel desejoso de purificar sua alma. Um jovenzinho se aproxima e ajoelha-se frente a frente com o ministro de Deus, como acontece normalmente com esse povo categórico. Sem dúvida alguma, ele queria confessar-se.
— Ave Maria puríssima! — disse o padre, segundo o costume ali vigente.
— Sem pecado concebida! — respondeu sem hesitar o penitente, tal como fazia desde sua infância.
Entretanto, o confessor o corrigiu, com a característica ênfase ibérica:
— Não! Deves responder-me: “Em graça concebida!”.
Esse pequeno episódio revela uma importante verdade teológica, e a frase do sacerdote encerra um belo louvor à Mãe de Deus.
A maior plenitude concebível abaixo de Deus
Voltemos nossa atenção para um século e meio atrás, aos 8 de dezembro de 1854. Foi nesse dia que o Beato Pio IX, falando ex cathedra, declarava ter sido a Bem-Aventurada Virgem Maria “preservada imune de toda mancha do pecado original”1 por singular graça e privilégio de Deus. Proclamava assim, perante o regozijo do orbe cristão, que a doutrina da Imaculada Conceição “foi revelada por Deus, e por isto deve ser crida firme e inviolavelmente por todos os fiéis”.2
Sublime prerrogativa esta, a de ser preservada de toda mancha! Contudo, se analisarmos mais detidamente, veremos que nessas palavras se encerra não só o aspecto negativo do dogma — ter sido Ela concebida sem pecado — mas também, necessariamente, o aspecto positivo dessa mesma realidade: Maria foi concebida em graça e, como afirma o Concílio Vaticano II, foi “enriquecida, desde o primeiro instante da sua Conceição, com os esplendores duma santidade singular”.3
O Espírito Santo habitou n’Ela desde o início de sua existência, enchendo-A de seus dons, virtudes e carismas com tanta abundância, conforme ensina o Beato Pio IX: “Ela possui tal plenitude de inocência e de santidade que, depois da de Deus, não se pode conceber outra maior”.4
Desde o primeiro instante de sua Imaculada Conceição
É a essa plenitude de graças que faz referência o Arcanjo Gabriel na sua saudação: “Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo” (Lc 1, 28).
Enganar-se-ia quem objetasse que o fato de Maria Santíssima estar repleta de graças não significa que já o estivesse antes do anúncio do Anjo. Portanto A imaginasse como uma moça boazinha, com suas falhas e defeitos, que foi repentinamente tomada pelo Espírito Santo no momento da aparição de São Gabriel.
Essa hipótese, entretanto, repugna o nosso senso católico e contradiz os princípios da Mariologia, pois, conforme explica um renomado teólogo do século XX, a doutrina de que a graça inicial de Maria Santíssima fosse superior à de todos os Anjos e Santos reunidos é “completamente certa em Teologia”.5
Para explicar essa afirmação, outro teólogo contemporâneo aduz diversos argumentos, entre os quais o seguinte: “Como o ser preservada de pecado não é outra coisa senão possuir a graça santificante desde o princípio da existência, e como Maria foi preservada de modo singularíssimo do pecado original, segue-se claramente que desde o princípio esteve cheia de graça”.6
Especialmente esclarecedora é a explicação de São Tomás. Argumenta ele que “quanto mais próximo está alguém do princípio, seja qual for o gênero, mais participa de seu efeito”.7 Ou seja, assim como quem se coloca mais perto do fogo mais se aquece, quanto mais uma alma se aproxima de Deus tanto mais participa de seus dons. E conclui: “Ora, a Bem-Aventurada Virgem Maria foi a que esteve mais próxima de Cristo segundo a humanidade, pois foi d’Ela que Cristo recebeu a natureza humana. Eis por que Ela tinha de obter de Cristo uma plenitude de graça maior do que as outras pessoas”.8
É justamente essa proximidade de Cristo, pela sua predestinação como Mãe de Deus, que explica a plenitude de graças de Maria Santíssima desde o primeiro instante de sua Conceição.
Tríplice plenitude de graça
Evidentemente, a plenitude de graça em Maria não é idêntica à de seu Filho. Em Cristo, Autor da graça, ela é absoluta; portanto, sem possibilidade de aumento. Em Nossa Senhora, porém, é relativa e suscetível de crescimento, na medida em que aumentava a capacidade da sua alma, de algum modo unida à ordem hipostática. Segundo alguns teólogos, Maria crescia em graça até durante o sono, pois Ela possuía a ciência infusa, e esta continua funcionando quando a pessoa adormece.9
Na realidade, com base no Doutor Angélico,10 não deveríamos falar da plenitude de graça de Maria, mais sim de uma tríplice plenitude vinculada ao privilégio da maternidade divina: a dispositiva, concedida no instante de sua concepção, com vistas a torná-La idônea a ser a Mãe de Cristo; a perfectiva, no momento da Encarnação do Verbo, quando Ela recebeu um imenso acréscimo de graça santificante; e a final ou consumativa, ou seja, a que a alma possui na glória celestial.
A morada que Deus preparou para Si
Dizia o Doutor Melífluo que De Maria nunquam satis — d’Ela não há o que baste. Pois Deus depositou na Virgem Maria todas as perfeições que era possível uma mera criatura ter. Ela transcende todos os Santos, como o Céu transcende a Terra. Ela é a montanha preferida por Deus, para habitar no tempo e na eternidade. Em louvor a Ela, canta o Salmista: “Montes escarpados, por que invejais a montanha que Deus escolheu para morar, para nela estabelecer uma habitação eterna?” (Sl 67, 17).
Quão bela, santa e perfeita morada preparou Cristo Senhor para Si! Quão sublime e magnífica a Mãe que Ele deu para nós!
1PIO IX. Ineffabilis Deus. 
2Idem, ibidem. 
3CONCÍLIO VATICANO II. Lumen gentium, n.56. 
4PIO IX. Ineffabilis Deus.
 5ROYO MARÍN, OP, Antonio. Jesucristo y la vida cristiana. Madrid: BAC, 1959, p.224. 
6ALASTRUEY, Gregorio. Tratado de la Virgen Santísima. 3.ed. Madrid: BAC, 1952, p.261.
7SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.27, a.5.
Idem, ibidem. 
9Cf. ALASTRUEY, op. cit., p.272-275. 
10 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., ad 2.
 Revista arautos do Evangelho Jul 2014

quinta-feira, 23 de julho de 2015

A caridade hoje

“Quão numerosas, ó Senhor, são vossas obras, e quanta sabedoria em todas elas!” (Sl 103, 24) — exclama o Salmista, pervadido de admiração, ao contemplar a incomensurável variedade de criaturas que enchem o universo.
Nos esplendores da aurora, varando as nuvens, os raios vitoriosos do Sol derramam sua generosa claridade sobre a vastidão da Terra. A luz desce as montanhas, atinge as encostas e vales, fecunda plantações, suscita o concerto das aves e desperta os rebanhos. Dir-se-ia que o astro rei tem pressa em voltar a espargir seus benefícios, e que a Terra, há pouco escura, cheia de saudades, exulta afinal pelo reencontro.
Por sua vez, no decurso das estações e dos tempos, o mundo vegetal se apressa em distribuir suas riquezas sem conta, e parece rejubilar-se em esbanjá-las. Trigais dourados e plantios infindos para o homem, pastagens copiosas para o gado, frutos em profusão para os pássaros, abundância para todos. A generosidade se apresenta também como a regra desse universo vivo de raízes, ervas e troncos, que o solo dadivoso se compraz em sustentar e fortalecer.
Quanta prodigalidade! A natureza se revela como imensa sinfonia, na qual seres irracionais ou inanimados, cumprindo perenes desígnios do Criador, multiplicam os favores e persistem na doação generosa, ou são beneficiados e recebem de outros o necessário para sua subsistência. Inúmeras lições poderíamos auferir de tantas maravilhas, mas, sem dúvida, há uma que salta aos olhos do bom observador: a ordem da criação resplandece diante de nós como magnífico espelho da CARIDADE.
Caridade! Virtude desconhecida no paganismo e apenas vislumbrada no Antigo Testamento, desceu à Terra com o Verbo de Deus e se difundiu na humanidade como divino perfume do próprio Jesus Cristo. É por ela que todos se harmonizam: grandes e pequenos, poderosos e desvalidos. Movidos pela caridade, incontáveis homens e mulheres mais dotados de fortuna transformaram-se, ao longo da História, em verdadeiros anjos de proteção e dedicação aos pobres e miseráveis. Pelo impulso da caridade, os corações e as bolsas se abriram: edificaram-se hospitais, alimentos foram distribuídos, dores aliviadas, lágrimas enxugadas e corpos gélidos aquecidos. Quão belos espetáculos a caridade protagonizou no relacionamento entre ricos e pobres!
O que seria dos pobres, se ricos não houvesse para consolá-los com sua ajuda? E, se não existissem os pobres, como poderiam os ricos praticar esse amor de misericórdia, do qual o Sagrado Coração de Jesus é a fornalha ardente?
Caridade! Regra perfeita de uma sociedade verdadeiramente conforme ao Evangelho, na qual os ricos, sem terem de renunciar à sua riqueza, são irmanados em Cristo com os pobres; e estes, mesmo não se enriquecendo, veem naqueles a mão dadivosa de Deus. Nessa sociedade germinará e florescerá, até o fim dos tempos, o ideal descrito pelo Apóstolo:

“A caridade é paciente, a caridade é bondosa, não tem inveja. A caridade não é orgulhosa, não é arrogante nem escandalosa, não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não guarda rancor. [...] Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. A caridade jamais acabará” (I Cor 13, 4-8). 
Revista Arautos do Evangelho jul 2013

quinta-feira, 19 de março de 2015

Oração para pedir a boa morte


São José, meu amável protetor, que morrestes nos braços de Jesus e de Maria, socorrei-me em todas as necessidades e perigos da vida, mas principalmente na hora suprema, vindo suavizar minhas dores, enxugar minhas lágrimas, fechar suavemente meus olhos, enquanto pronunciar os dulcíssimos nomes: Jesus, Maria, José, salvai a minha alma!

Amém.

sábado, 7 de março de 2015

O que são os tempos litúrgicos?

Estamos no tempo da Quaresma, depois virá a Páscoa e em seguida o tempo comum novamente. Talvez você já tenha se perguntado o porquê disso ou por que a Páscoa não cai no mesmo dia todo ano.
Assista ao vídeo para esclarecer essas dúvidas.



sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

O pálio

Uma imagem do jugo de Cristo
No dia 21 de janeiro, memória litúrgica de Santa Inês, o Papa abençoa dois cordeiros cuja lã será utilizada para confeccionar o pálio dos Arcebispos Metropolitanos.
Grande foi a surpresa dos quase cinco mil peregrinos ao ouvirem os balidos de dois cordeiros que entravam calmamente acomodados em duas cestas de vime na Sala Paulo VI, durante a audiência geral do Papa João Paulo II, em 21 de janeiro de 2004.
Que faziam ali, naquele solene momento, os dois animaizinhos?
A resposta a essa interrogação que se notava dos olhares não tardou. Era dia da comemoração litúrgica de Santa Inês, e o Ritual dos Pontífices estabelece que todo ano, nessa data, o Papa abençoe dois cordeiros cuja lã será utilizada para confeccionar os pálios a serem impostos aos novos arcebispos na solenidade de São Pedro e São Paulo, 29 de junho.
A cerimônia da bênção costuma realizar-se nos alojamentos particulares do Pontífice, mas como aquele 21 de janeiro caiu na quarta-feira, dia de audiência geral, João Paulo II decidiu fazê-la na Sala Paulo VI, perante os peregrinos.
Uma história quase bimilenar
É pouco conhecida a história do pálio, embora ele seja a mais antiga e característica insígnia do Bispo de Roma. Sua origem remonta à Grécia antiga, onde os grandes oradores e os mais destacados filósofos costumavam levar em torno do pescoço uma espécie de echarpe ou faixa branca, que os distinguia dos demais cidadãos. Esse adorno foi chamado de pallium pelos romanos.
Com o passar dos anos e o desenvolvimento do cerimonial litúrgico, vários elementos dos trajes em voga no Império Romano foram adotados pela Igreja, que os adaptou e sacralizou para serem utilizados nos atos de culto. Esta é a origem, por exemplo, da estola, da alva, da casula, da dalmática, etc.
Assim se deu também com o pálio. Seu aparecimento na Igreja do Ocidente remonta ao séc. IV, no curto pontificado do Papa São Marcos (janeiro a outubro de 336). Durante muitos séculos, seu uso ficou reservado ao Sumo Pontífice, como símbolo do peculiar múnus do Bispo de Roma e de sua estreita relação com o Apóstolo São Pedro.
No decorrer do tempo, entretanto, ele passou a ser usado também por alguns bispos. E a partir do séc. IX tornouse ornamento litúrgico característico dos arcebispos metropolitanos. Atualmente, todo metropolita tem a obrigação de solicitar o pálio ao Papa, no prazo de três meses após sua consagração episcopal, segundo determina o Código de Direito Canônico (cân. 437).
Ornamento de alto valor simbólico
O pálio é rico de símbolos teológicos e litúrgicos. No início, colocado em torno do pescoço, suas duas faixas com cruzes negras desciam de ambos os lados do ombro esquerdo, significando a ovelha carregada aos ombros pelo Bom Pastor.
No séc. IX houve uma mudança: as duas faixas se estendiam pelo centro do peito e das costas do arcebispo; as cruzes passaram a ser vermelhas, recordando as chagas de Cristo; e foram acrescentados três grandes alfinetes negros, representando os cravos com os quais Ele foi pregado à Cruz.
Alguns séculos mais tarde, quando se reduziram as dimensões dos paramentos, diminuiu-se também a do pálio, e foram-lhe dados o formato e as cores atuais, ou seja, passou a ser uma faixa de lã branca, com poucos centímetros de largura, ornada por algumas cruzes negras e três belos alfinetes. E no início do pontificado de Bento XVI foi idealizada uma nova forma de pálio para uso exclusivo do Papa, que se assemelha ao modelo romano antigo.
Quando o Decano do Colégio Cardinalício lhe impôs o pálio, o Papa Emérito comentou: “Este antiquíssimo símbolo pode ser considerado uma imagem do jugo de Cristo, que o Servo dos Servos de Deus toma sobre suas costas. A lã do cordeiro simboliza a ovelha perdida, ou a doente ou débil, que o pastor coloca sobre as costas e leva às águas da vida. A parábola da ovelha perdida era para os Padres da Igreja uma imagem do mistério de Cristo e da Igreja. ‘Apascenta as minhas ovelhas’, disse Cristo a Pedro. E a mim Ele diz o mesmo, neste momento”.
Em discurso na cerimônia de imposição do pálio a um grupo de arcebispos metropolitanos em 1999, o Papa João Paulo II realçou dois importantes significados. O primeiro é a especial relação dos metropolitas com o Sucessor de Pedro. Em segundo lugar, os cordeiros que forneceram a lã para sua confecção simbolizam “o Cordeiro de Deus que tomou sobre Si o pecado do mundo e Se ofereceu em resgate pela humanidade”. E acrescentou: “O pálio, com o candor da sua lã, é apelo à inocência da vida e, com a seqüência das seis cruzes, é referência a uma quotidiana fidelidade ao Senhor, até ao martírio, se for necessário”.
“Tomado do corpo de São Pedro”
Dado esse alto valor simbólico, compreende-se que se tomem especiais cuidados para a confecção dos pálios. Assim, todo ano são selecionados dois cordeiros entre os mais belos e saudáveis do Agro Romano, os quais, depois de serem abençoados pelo Papa no dia 21 de janeiro, são levados para uma dependência da Basílica de Santa Cecília, no Trastevere, onde as monjas beneditinas que ali residem cuidam deles com esmero. Depois, no momento propício, elas os tosam e tecem a lã com a qual elas próprias confeccionam primorosamente os pálios.
Estes são então entregues ao Papa, que os manda depositar num escrínio junto ao túmulo de São Pedro, nas Grutas Vaticanas. Ali eles permanecerão durante um ano, tornando- se, assim, uma espécie de relíquia indireta de São Pedro. Isso confere maior propriedade à fórmula “de corpore Beati Petri sumptum” (“tomado do corpo de São Pedro”), usada na cerimônia de imposição. “É do túmulo do Apóstolo, memória permanente da sua profissão de fé no Senhor Jesus, que o pálio recebe força simbólica”, afirmou João Paulo II, no mencionado discurso pronunciado em 1999.
Revista Arautos do Evangelho - Março 2006







domingo, 8 de fevereiro de 2015

O Cristo do Veneno

Qual seria a origem de invocação tão inusual, sob a qual é venerado esse antigo crucifixo?
Quem passeia pela Cidade do México pode encantar-se com belos monumentos, mansões, conventos e igrejas ricamente ornadas. Na região chamada “El Zócalo” há muitas coisas para ver, entre outras, a grandiosa catedral da cidade, ainda danificada pelo terremoto de 1985. Não muito longe desta, encontra-se a rua Venustiano Carranza, por onde circulam diariamente milhares de pessoas, seja para compras ou simplesmente para se recompor da faina diária, saboreando os típicos tacos ou então as quesadillas.
É nessa região que deparamos com um pequeno templo chamado Porta Cœli, aonde muitos fiéis vão para agradecer as graças recebidas ou pedir favores diante de uma imagem conhecida pelo singular nome de “Senhor do Veneno”.
Qual é a história de tão inusual invocação? Em 1602, chegou ao México, então Nova Espanha, uma delegação de dominicanos, trazendo para o seu seminário um belo crucifixo de tamanho natural, com a imagem de Jesus de alvura impressionante. Essa imagem foi entronizada no lado esquerdo, próximo à entrada da igreja.
Ali havia um clérigo, o qual dedicava especial devoção àquele Cristo. Não deixava passar um dia sem fazer as orações diante dEle e oscular piedosamente Seus venerandos pés. Certa vez, esse sacerdote atendeu em confissão um homem que declarou ter roubado e matado cruelmente. Ante a revelação de tal crime, o religioso afirmou que Deus perdoaria sempre, desde que restituísse o roubado e se entregasse à justiça, pois não bastava se confessar, mas era também necessário se arrepender e reparar o dano sofrido. O criminoso recusou-se a fazê-lo, retirando-se do confessionário furioso. Temendo ser denunciado, maquinou um pérfido plano para assassinar o sacerdote.
Escondido pelas sombras da noite, furtivamente se introduziu na capela e molhou os pés do Cristo com um poderoso veneno. Ninguém o viu e, sorrateiro como havia chegado, ocultou-se num canto sombrio. No dia seguinte, depois de fazer as orações costumeiras, aproximou-se o padre para beijar os pés da imagem, quando, para seu espanto, ela dobrou os joelhos milagrosamente, levantando os pés, de modo a impedir que estes fossem osculados. Enquanto isso, a imagem absorveu o veneno, em consequência do qual sua cor se tornou negra.
O religioso teve ainda maior surpresa quando ouviu soluços provenientes de alguém oculto atrás de uma coluna. Era o assassino do dia anterior, que ali aguardava o efeito de seu maligno plano. Verdadeiramente arrependido ao testemunhar tão maravilhoso prodígio, em prantos, fez por fim uma sincera confissão e logo em seguida entregou-se à justiça, disposto a pagar por seus crimes.
Desde então, a milagrosa imagem passou a chamar-se “Senhor do Veneno”. Todos concordavam que o Cristo não só havia protegido seu devoto, absorvendo o veneno, mas Seu misericordioso ato também simbolizava como Nosso Salvador toma a Si nossos pecados, estes sim um terrível veneno, que mata a alma, impedindo-a de alcançar a vida eterna.

Anos depois, a imagem foi transferida para a catedral metropolitana. Quando a igreja de Porta Cœli foi entregue aos sacerdotes do rito greco-melquita em 1952, o pároco desta incumbiu um renomado artista de esculpir uma cópia, a fim de que o “Cristo do Veneno” pudesse ser venerado também na sua igreja de origem.
Revista Arautos fev 2009