quarta-feira, 22 de maio de 2013

Orquídeas e santos


A indescritível diversidade existente entre as orquídeas aponta para outra maior: a dos santos. Há no Jardim Celestial uma variedade superior à das flores terrenas.
Elegantemente suspensas no tronco de frondosas árvores, exalando perfume, beleza e suavidade, desabrocham, sobretudo, nas selvas tropicais umas das mais belas flores que o homem possa contemplar: as orquídeas.
Embora a maioria delas nasça nas florestas quentes, seu mais propício hábitat natural, outras brotam em prados secos ou úmidos, em relvados, mangais, matas temperadas, dunas, rochas e até no subsolo. Pois esta família botânica de surpreendente variedade compõe-se de dezenas de milhares de espécies oriundas de todas as latitudes do planeta: do círculo polar ártico ao mais tórrido clima equatorial.
Muitas destacam-se por suas exóticas formas e combinações de cores; outras apresentam um aspecto mais sóbrio, sem serem, entretanto, menos belas. Também existem aquelas de aparência jocosa, como a Orchis símia, uma espécie europeia que evoca a forma de macaco. Algumas têm um colorido “selvagem” que faz lembrar a pele de um tigre ou um leopardo. Já as do gênero Oncidium são conhecidas como “chuva de ouro”, devido ao seu pequeno tamanho, vistosa cor amarelo vivo e exuberante inflorescência.
Contudo, a maioria das orquídeas se caracteriza por uma beleza suave e harmônica. Assim são as do gênero Barkeria, originárias do México, de delicados tons rosados ou lilás, e as Catleias, verdadeiras rainhas desta família botânica, cuja deslumbrante formosura os cultivadores procuram incessantemente requintar. No mundo das orquidáceas, como no das flores em geral, o charme se encontra na variedade de formas, cores e perfumes. Se todas elas fossem iguais, perderiam muito de seu esplendor.
* * *
A indescritível diversidade existente entre as flores aponta para outra ainda maior: a das almas. Embora todos os homens gozem de igual dignidade — enquanto seres criados à imagem de Deus, dotados de alma racional e redimidos pelo Sangue preciosíssimo de Cristo —, cada um difere dos demais, por refletir um aspecto original e único das infinitas perfeições do Criador.
E assim como acontece com as orquídeas, há santos de todos os feitios, temperamentos, carismas. Junto a São Filipe Neri, simpático e até jocoso, deparamo-nos com o ascético Santo Antão; veneramos tanto São Luís, Rei de França, ou Santa Isabel, Rainha de Portugal, quanto o Poverello de Assis ou Santa Zita, empregada doméstica.
Nada tão desigual e ao mesmo tempo tão semelhante quanto dois santos. Nada mais harmônico que o grande Jardim Celestial onde brilham as feéricas cores das boas obras, e do qual emana o perfume inebriante das virtudes dos bem-aventurados. Há ali uma variedade superior à da família das orquídeas, pois o universo das almas é mais rico em diversidades e belezas do que qualquer outro conjunto da terra. 

terça-feira, 7 de maio de 2013

Histórias para catequese

Na cozinha, com Irmão Bartolomeu


No fim da tarde, o mestre em doutrina se apresentou na cozinha, para ajudar o frei cozinheiro. Justo naquela noite, o prato da ceia seria talharim com molho ragu.
Situado no último andar da mais alta torre do mosteiro, o quarto do abade Luigi ocupava um lugar estratégico. A escolha do aposento não fora sem motivo, pois o prudente superior fazia questão de ter uma boa visão do mosteiro entregue pela Providência aos seus cuidados.
Naquela manhã, ao olhar pelas janelas, dois monges lhe chamaram a atenção. O primeiro foi Irmão Bartolomeu, o qual, subindo a trilha, voltava da cidade arfando sob o peso de duas grandes sacolas repletas de víveres por ele recebidos na feira da cidade.
Esse bom frade era homem simples, de pouca instrução, mas muito piedoso e dedicado. Conseguia os mantimentos e ele mesmo os preparava, procurando, até onde permitia a pobreza franciscana, servir aos monges a melhor alimentação possível.
Da outra janela, o abade avistava o claustro. Sentado em um banco de pedra, estava o segundo monge alvo de suas atenções. Tendo alguns livros empilhados à sua volta, Frei Lucrécio lia entusiasmado um grosso volume de apologética. Era ele quem ministrava as aulas aos jovens noviços, e sua segurança em matéria doutrinária lhe granjeara fama nas redondezas, a tal ponto que tanto leigos como religiosos vinham consultá-lo sobre intrincados pontos dos ensinamentos cristãos.
Observando os dois monges, o velho abade pôs-se a meditar na grandeza de Deus, que criava homens tão diferentes, mas os fazia viver sob o mesmo teto, irmanados pela mesma vocação, e chamados a servir a seus semelhantes de maneiras diversas.
* * *
No meio daquela tarde, alguém subiu os degraus da torre e bateu à porta do quarto do abade. Era Frei Lucrécio. Com um livro debaixo do braço, pedia uma conversa reservada com seu superior.
— Pois não, irmão. Alguma dificuldade o aflige?
— Não a mim, senhor abade, mas à nossa comunidade. Desculpe-me, mas não posso mais suportar o fato de haver entre nós uma pessoa tão desqualificada como esse... esse Irmão Bartolomeu!
O abade Luigi levantou as sobrancelhas, um pouco surpreso. Que mal teria feito o humilde monge? E Frei Lucrécio continuou, dando argumentos para demonstrar como aquele homem tão ignorante causava malefício à comunidade:
— Ele simplifica tudo! Nunca consegue acompanhar os elevados raciocínios que eu, mestre em teologia, procuro transmitir. Ademais, tem costumes estranhos, como, por exemplo, na ocasião em que tentou ensinar um papagaio a rezar a Ave Maria...
O abade ouviu, com ar perplexo e sem dizer palavra, o monge apresentar suas queixas. Seu olhar atento indicava estar ele pensando rápido, porém profundamente. E quando o outro terminou de falar, respondeu:
— Pois bem. Tudo quanto você me disse é muito sério. Mas eu gostaria de ter mais dados, antes de tomar alguma atitude. Por exemplo, não sei exatamente o que ele faz na cozinha, quando fica sozinho. Assim, peço acompanhá-lo esta tarde na preparação do jantar, e depois me apresentar um relato detalhado de tudo o que ele diz e faz. Fique atento a qualquer atitude na qual ele demonstre essa suposta mediocridade, ou ignorância, por você mencionada. Em função disso, tomaremos uma atitude.
* * *

E assim foi. No fim da tarde, o mestre de teologia se apresentou na cozinha, para ajudar o irmão cozinheiro. Como este nunca discutia uma ordem superior, nada perguntou a respeito. Justo naquela noite, o prato da ceia seria talharim com molho ragu. O douto monge observava com atenção tudo quanto o outro fazia. Além da carne moída, havia vários ingredientes que lhe pareciam bem saborosos, como, por exemplo, cebola, toucinho e tomate, este último por ele especialmente apreciado. Quando, porém, Frei Bartolomeu começou a cortar as cenouras, Frei Lucrécio protestou:
— Como? A tantas delícias, você vai acrescentar essas míseras cenouras? Esse vegetal mesquinho vai alterar completamente o gosto do molho!
— Mas... mas... eu sempre fiz assim! — disse o pobre cozinheiro.
— Pois bem, se quiser, sirva isso para os outros. Para mim, separe uma parte do molho, sem essas pérfidas cenouras.
Enquanto isso, Frei Lucrécio pensava consigo mesmo: “Aqui está, sem dúvida, uma prova da ignorância desse homem, pois em tudo o que ele faz procura acrescentar uma nota de mau gosto, como essa história das cenouras. Amanhã, vou contar isso ao abade”.
Na hora do jantar, todos comeram a pasta com o ragu convencional, exceto Frei Lucrécio, a quem foi servida a parte sem cenouras. Para sua surpresa, o preparado estava horrivelmente ácido, a tal ponto que ele com dificuldade pôde terminar o prato. Como, porém, havia sido uma exigência sua, ele tudo comeu sem nada reclamar...
* * *
Aquela não foi uma boa noite. O molho definitivamente não lhe caiu bem. Ele não conseguiu dormir direito, teve pesadelos e acordou várias vezes com enjôo. Na manhã seguinte, pálido e com olheiras, foi falar com o abade para apresentar seu relato. Este se impressionou com o aspecto doentio do douto mestre, o qual então lhe contou o ocorrido com o molho ácido, causa de seu mal-estar.
O experiente abade, sorrindo, lhe disse:
— Sabe, Irmão Lucrécio, quando fui noviço, trabalhei um bom tempo na cozinha. Aliás, fui eu que pedi a Frei Bartolomeu para fazer ragu ontem. É bem interessante como a culinária, em certas ocasiões, apresenta exemplos úteis à vida religiosa. Na verdade, compor uma boa comunidade muitas vezes é como preparar uma boa receita: exige a sábia combinação de vários ingredientes. Veja o tomate: tem um sabor todo especial e é um dos elementos centrais do molho, mas facilmente se torna ácido; por isso é necessário colocar junto dele a humilde cenoura, cuja função nessa receita não é dar sabor, mas justamente absorver a acidez do conjunto.
Irmão Lucrécio, acredito que esteja compreendendo bem esta comparação, mas quero deixá-la mais clara. Assim como o cozinheiro na preparação da receita, também eu, na função de abade, devo cuidar de monges que me são preciosos por sua sabedoria e doutrina, embora sejam por vezes “ácidos”. E para isso, me ajuda dispor também de outros que não têm muita proeminência, mas, por sua simplicidade, agem como as cenouras no molho ragu: suavizam o conjunto. Entende agora, irmão, porque me alegra poder ter você e Frei Bartolomeu juntos em nossa comunidade?
Frei Lucrécio aceitou com humildade as palavras de seu virtuoso abade. Reconfortado, agradeceu o ensinamento e, após a benção, se dispôs a sair. Quando estava já à porta, ele ainda lhe disse:
— Ah, um detalhe a mais, irmão: o molho ficou ácido também por não ter cozido durante o tempo suficiente; na culinária como na vida cristã, a paciência é uma virtude fundamental para que tanto o alimento quanto o convívio tenham sabor suave e agradável...