quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Cartas das trincheiras

Um volume publicado por ocasião do centenário da Primeira Guerra Mundial reproduz eloquentes testemunhos de intervenções de Santa Teresinha em favor de soldados que a ela recorreram.
No dilúvio de fogo e ferro que assolou a Europa entre os anos 1914 e 1918 não faltaram comovedores episódios de Fé. E entre eles cabe mencionar a inesperada torrente de veneração dos poilus1 para com uma humilde freira falecida em odor de santidade em 1897: Sor Teresa do Menino Jesus e da Sagrada Face.
O mosteiro carmelitano de Lisieux, onde ela fez o holocausto de sua vida ao amor misericordioso de Deus, possui mais de dois mil dossiês contendo cartas autógrafas recebidas no decorrer do conflito, bem como condecorações, medalhas, balas, capacetes e obuses transformados em ex-votos.
Comemorando o primeiro centenário da deflagração dessa guerra, uma prestigiosa editora francesa lançou, em colaboração com o mosteiro, um volume de 203 páginas2 contendo uma seleção de 75 dessas cartas, muito pouco conhecidas. Reproduzimos abaixo algumas delas.
Parti sem me confessar
Sou um favorecido por Teresinha do Menino Jesus e deposito nela grande confiança. Visitei seu túmulo em maio de 1914 e voltei muito impressionado. Entretanto, tendo sido declarada a guerra, recusei-me a atender aos instantes pedidos de minha mulher e parti sem me confessar. O respeito humano impediu-me de cumprir meu dever de católico.
Estava afastado da Igreja desde minha Primeira Comunhão. Todavia, aceitei uma relíquia e uma pequena imagem da Irmãzinha, e recorria instintivamente a ela cada vez que me encontrava em perigo nos combates. E ela me protegia, e também aos meus camaradas, pois nunca vi nenhum deles morto ou ferido perto de mim.
Em meados de setembro, estávamos nas trincheiras do Gotha, perto de Reims, numa situação difícil, pois a artilharia não cessava de troar. Pensando com muita tristeza em minha pequena família, eu rezava: “Minha Irmã Teresa, eu vos suplico, devolvei-me à minha esposa e aos meus filhos, e prometo ir visitar vosso túmulo logo depois de retornar a minha terra”.
Mal terminara essa oração, vi abrir-se uma nuvem e aparecer no céu azul o rosto da santa. Julgava-me vítima de uma alucinação. Esfreguei várias vezes os olhos, olhando de novo a visão, mas não podia ter dúvida alguma, pois sua fisionomia se mostrava cada vez mais clara e resplandecente. Pude contemplá-la assim por cerca de dois minutos. Observei sobretudo seus belos olhos, elevados ao céu como para rezar.
Desde então sempre fui corajoso; não me sentia mais sozinho. Tinha também a mais firme esperança de reencontrar minha família e tomei a inabalável resolução de voltar ao Deus da minha infância.
De fato, pouco tempo depois, por motivo de doença, fui retirado do front e conduzido ao hospital; e quando ali alguém perguntou quem queria comungar, não tive medo de manifestar meu desejo.3
“Devo isto à minha pequena Irmã Teresa!”
Desde o início da guerra, tenho comigo uma relíquia da Irmã Teresa. Eis o que me aconteceu. No último dia de batalha na região da Marne, em setembro, tínhamos apenas oito canhões, contra 25 do inimigo. Nesse momento crítico, acabou-se nossa munição e, na precipitação para avançar outra bateria que vinha substituir a nossa, caí e meu canhão passou sobre minhas duas pernas. Elas deveriam ter sido completamente esmagadas, pois cada canhão pesa mais de duas toneladas!
Meus queridos companheiros de armas acorreram para me transportar. Qual não foi, porém, seu espanto ao verem-me levantar sem dificuldade alguma! “Milagre! Milagre!”, gritaram todos. Respondi-lhes logo, com o coração transbordante de gratidão: “Devo isto à minha pequena Irmã Teresa!”. Ato contínuo, tirei do bolso um lápis branco e escrevi em grandes letras no meu canhão: BATERIA IRMÃ TERESA DO MENINO JESUS.
E desde então, quando chove e a inscrição se apaga, eu a reescrevo o mais rápido possível. Tenho uma confiança ilimitada na proteção desta santa.4
Um estilhaço de granada em pleno peito
Sob juramento, afirmo dever a vida à Irmã Teresa do Menino Jesus. Em 16 de março de 1916, na véspera de partir pela segunda vez para o front, um de meus camaradas deu-me uma imagem da santinha, dizendo-me: “Parece que ela obteve já muitos milagres em favor dos soldados, e nos protege”. Até então, eu não a conhecia, mas desde esse dia não deixei de invocá-la todas as noites, rezando um Pai-nosso e uma Ave-Maria em sua homenagem.
Pouco depois, em 30 de abril, participei da sangrenta batalha de Mort-Homme, em Verdun. No terrível combate, sem parar de lutar, eu rezava a Sor Teresa. Recorria a ela, não por medo, pois nunca tive medo, mas lhe pedia que sustentasse minha coragem, coisa bem necessária naquele trágico momento! De repente, na confusão do combate, a 20 metros do inimigo, recebi em pleno peito um estilhaço de granada. Desmaiei e, quando recobrei os sentidos, a batalha continuava no auge. Exaurido e perdendo sangue, não tinha forças para me arrastar para fora. Mas, lembrando-me de minha santa Protetora, gritei: “Irmã Teresa do Menino Jesus, não me abandone!”.
E ela ouviu minha súplica, pois, sob as rajadas das metralhadoras, logo chegaram os padioleiros e me transportaram ao primeiro posto de socorro. Lá, julgando grave o meu caso, um valente capelão administrou-me, ao som dos canhões, a Extrema Unção. Apesar dos sofrimentos, eu me sentia feliz e pensava, com gratidão, que esse socorro religioso eu o devia à Irmã Teresa. Eu tinha tanta confiança na querida santinha que, uma vez ao abrigo das balas, pedi-lhe um segundo milagre: o de curar-me e me guiar até a sua sepultura, em Lisieux. E fui atendido. [...]
Agora sinto-me disposto a todos os sacrifícios, todos os sofrimentos, pois a Santa fez-me compreender que assim expiarei meus pecados e ademais, que Jesus Cristo padeceu muito mais por nós.5
                                                                 * * *
Passou-se um século exato desde o início da terrível guerra e a devoção à Santa da Pequena Via não tem feito senão crescer e expandir-se pelo mundo todo. Pio XI a canonizou em 1925, apenas 28 anos depois de sua morte. E em 1997 São João Paulo II a proclamou Doutora da Igreja.
Fiel à sua promessa de passar o Céu fazendo bem à Terra, tem ela favorecido especialmente as novas gerações, tão necessitadas de ajuda espiritual em razão da sua marcante debilidade.
 1 Termo usado para designar os combatentes franceses da Primeira Guerra Mundial, que significa, literalmente, “peludo”. Sua origem se remonta à época de Napoleão, quando se incorporaram ao exército grande número de soldados vindos do campo, que não tinham o costume de se barbear.
2 Nous les Poilus. Plus forte que l’acier – Lettres des tranchées à Thérèse de Lisieux. Paris: Du Cerf, 2014.
3 Carta de Auguste Cousinard, op. cit., p.17-19.
4 Carta de Paul Dugast, op. cit., p.20-21. Carta de J. Lallement, op. cit., p.64-65.

5 Carta de J. Lallement, op. cit., p 64-65.