segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Em graça concebida

Já no primeiro instante de sua concepção, Maria Santíssima foi enriquecida com uma plenitude de graças superior à de todos os Anjos e Santos reunidos.
Luz tênue, igreja praticamente vazia, pouco ruído. É fim de tarde na cidade de Granada. Num confessionário, um sacerdote reza seu Breviário, enquanto permanece à disposição de qualquer fiel desejoso de purificar sua alma. Um jovenzinho se aproxima e ajoelha-se frente a frente com o ministro de Deus, como acontece normalmente com esse povo categórico. Sem dúvida alguma, ele queria confessar-se.
— Ave Maria puríssima! — disse o padre, segundo o costume ali vigente.
— Sem pecado concebida! — respondeu sem hesitar o penitente, tal como fazia desde sua infância.
Entretanto, o confessor o corrigiu, com a característica ênfase ibérica:
— Não! Deves responder-me: “Em graça concebida!”.
Esse pequeno episódio revela uma importante verdade teológica, e a frase do sacerdote encerra um belo louvor à Mãe de Deus.
A maior plenitude concebível abaixo de Deus
Voltemos nossa atenção para um século e meio atrás, aos 8 de dezembro de 1854. Foi nesse dia que o Beato Pio IX, falando ex cathedra, declarava ter sido a Bem-Aventurada Virgem Maria “preservada imune de toda mancha do pecado original”1 por singular graça e privilégio de Deus. Proclamava assim, perante o regozijo do orbe cristão, que a doutrina da Imaculada Conceição “foi revelada por Deus, e por isto deve ser crida firme e inviolavelmente por todos os fiéis”.2
Sublime prerrogativa esta, a de ser preservada de toda mancha! Contudo, se analisarmos mais detidamente, veremos que nessas palavras se encerra não só o aspecto negativo do dogma — ter sido Ela concebida sem pecado — mas também, necessariamente, o aspecto positivo dessa mesma realidade: Maria foi concebida em graça e, como afirma o Concílio Vaticano II, foi “enriquecida, desde o primeiro instante da sua Conceição, com os esplendores duma santidade singular”.3
O Espírito Santo habitou n’Ela desde o início de sua existência, enchendo-A de seus dons, virtudes e carismas com tanta abundância, conforme ensina o Beato Pio IX: “Ela possui tal plenitude de inocência e de santidade que, depois da de Deus, não se pode conceber outra maior”.4
Desde o primeiro instante de sua Imaculada Conceição
É a essa plenitude de graças que faz referência o Arcanjo Gabriel na sua saudação: “Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo” (Lc 1, 28).
Enganar-se-ia quem objetasse que o fato de Maria Santíssima estar repleta de graças não significa que já o estivesse antes do anúncio do Anjo. Portanto A imaginasse como uma moça boazinha, com suas falhas e defeitos, que foi repentinamente tomada pelo Espírito Santo no momento da aparição de São Gabriel.
Essa hipótese, entretanto, repugna o nosso senso católico e contradiz os princípios da Mariologia, pois, conforme explica um renomado teólogo do século XX, a doutrina de que a graça inicial de Maria Santíssima fosse superior à de todos os Anjos e Santos reunidos é “completamente certa em Teologia”.5
Para explicar essa afirmação, outro teólogo contemporâneo aduz diversos argumentos, entre os quais o seguinte: “Como o ser preservada de pecado não é outra coisa senão possuir a graça santificante desde o princípio da existência, e como Maria foi preservada de modo singularíssimo do pecado original, segue-se claramente que desde o princípio esteve cheia de graça”.6
Especialmente esclarecedora é a explicação de São Tomás. Argumenta ele que “quanto mais próximo está alguém do princípio, seja qual for o gênero, mais participa de seu efeito”.7 Ou seja, assim como quem se coloca mais perto do fogo mais se aquece, quanto mais uma alma se aproxima de Deus tanto mais participa de seus dons. E conclui: “Ora, a Bem-Aventurada Virgem Maria foi a que esteve mais próxima de Cristo segundo a humanidade, pois foi d’Ela que Cristo recebeu a natureza humana. Eis por que Ela tinha de obter de Cristo uma plenitude de graça maior do que as outras pessoas”.8
É justamente essa proximidade de Cristo, pela sua predestinação como Mãe de Deus, que explica a plenitude de graças de Maria Santíssima desde o primeiro instante de sua Conceição.
Tríplice plenitude de graça
Evidentemente, a plenitude de graça em Maria não é idêntica à de seu Filho. Em Cristo, Autor da graça, ela é absoluta; portanto, sem possibilidade de aumento. Em Nossa Senhora, porém, é relativa e suscetível de crescimento, na medida em que aumentava a capacidade da sua alma, de algum modo unida à ordem hipostática. Segundo alguns teólogos, Maria crescia em graça até durante o sono, pois Ela possuía a ciência infusa, e esta continua funcionando quando a pessoa adormece.9
Na realidade, com base no Doutor Angélico,10 não deveríamos falar da plenitude de graça de Maria, mais sim de uma tríplice plenitude vinculada ao privilégio da maternidade divina: a dispositiva, concedida no instante de sua concepção, com vistas a torná-La idônea a ser a Mãe de Cristo; a perfectiva, no momento da Encarnação do Verbo, quando Ela recebeu um imenso acréscimo de graça santificante; e a final ou consumativa, ou seja, a que a alma possui na glória celestial.
A morada que Deus preparou para Si
Dizia o Doutor Melífluo que De Maria nunquam satis — d’Ela não há o que baste. Pois Deus depositou na Virgem Maria todas as perfeições que era possível uma mera criatura ter. Ela transcende todos os Santos, como o Céu transcende a Terra. Ela é a montanha preferida por Deus, para habitar no tempo e na eternidade. Em louvor a Ela, canta o Salmista: “Montes escarpados, por que invejais a montanha que Deus escolheu para morar, para nela estabelecer uma habitação eterna?” (Sl 67, 17).
Quão bela, santa e perfeita morada preparou Cristo Senhor para Si! Quão sublime e magnífica a Mãe que Ele deu para nós!
1PIO IX. Ineffabilis Deus. 
2Idem, ibidem. 
3CONCÍLIO VATICANO II. Lumen gentium, n.56. 
4PIO IX. Ineffabilis Deus.
 5ROYO MARÍN, OP, Antonio. Jesucristo y la vida cristiana. Madrid: BAC, 1959, p.224. 
6ALASTRUEY, Gregorio. Tratado de la Virgen Santísima. 3.ed. Madrid: BAC, 1952, p.261.
7SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.27, a.5.
Idem, ibidem. 
9Cf. ALASTRUEY, op. cit., p.272-275. 
10 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., ad 2.
 Revista arautos do Evangelho Jul 2014