sábado, 27 de outubro de 2012

A misericórdia triunfa sobre a justiça

 Há muito tempo, morava numa cidade da França uma jovem senhora cujo marido morrera, deixando-a com dois filhos pequenos: Guilherme e Roberto. A boa mãe não poupava esforços para lhes dar sólida educação cristã, a fim de serem mais tarde homens honestos e virtuosos como o fora seu pai.
Passavam-se os anos, e ambos cresciam fortes, saudáveis e inteligentes. Eram muito diferentes, porém, quanto ao comportamento: o mais velho, Guilherme, revelava-se disciplinado, estudioso e amante da oração; o mais novo, ao contrário, causava não poucas preocupações à mãe, por ser revoltado, insolente e dado à vadiagem. A pobre viúva esforçava-se por corrigi-lo, mas ele reagia com orgulho contra todas as suas admoestações.
Assim, quando os dois chegaram à idade de escolher cada qual seu rumo na vida, Guilherme decidiu seguir a carreira de Direito, a exemplo de seu falecido pai. Roberto deixou-se levar pelas suas más inclinações, juntou-se a maus companheiros, caiu no vício do jogo e um dia declarou sua intenção de partir: não se sentia bem no ambiente familiar, desejava viajar, conhecer o mundo! Indiferente às lágrimas maternas, abandonou o lar e o afeto dos seus. À desolada mãe só restava um recurso: redobrar de orações pela recuperação do filho desviado.
Pouco mais de dez anos depois, Guilherme foi nomeado juiz da cidade. Por sua honestidade e competência, em pouco tempo tornou-se famoso em toda a província: não havia problema que ele não resolvesse, injustiça que não punisse. Todos o respeitavam e estimavam.
* * *
Mas nem tudo era ordem e alegria naquela cidade. Uma perigosa quadrilha de salteadores assolava a região, deixando em pânico os moradores. As casas eram saqueadas, os proprietários despojados de seus objetos de valor. Se algum viajante aventurava-se à noite pelas estradas, os bandidos o assaltavam sem piedade e lhe roubavam tudo: dinheiro, jóias, cavalo, nada poupavam.
Guilherme promoveu uma caça sem tréguas aos terríveis malfeitores. De início, seus esforços revelavam-se vãos, pois os ladrões, espertos e conhecedores do terreno, várias vezes escaparam praticamente por entre os dedos da polícia.
À vista disto, o juiz decidiu percorrer os pontos mais vulneráveis das estradas, para intensificar as operações de patrulhamento. Na volta, havia já caído a noite. A pequena escolta policial cavalgava decidida e sem medo, mas com a estranha sensação de estar ameaçada por um iminente perigo.
De súbito, ouviu-se um grito agudo. Era o sinal de ataque dos bandidos, emboscados atrás das árvores. De todos os lados saltaram homens armados e atacaram os policiais e seu comandante. Guilherme, rodeado por três salteadores, defendeu-se com destreza e valentia, recebeu uma profunda ferida, ficou todo ensanguentado, mas manteve-se firme na sela, lutando e animando seus companheiros. O combate, embora árduo, foi curto. Os delinquentes fugiram, desaparecendo na escuridão.
Levado às pressas para a cidade, Guilherme recebeu socorros médicos e logo viu-se fora de perigo. Uma grave impressão, porém, o inquietava. Ele julgava ter reconhecido, à luz pálida da lua, a fisionomia do assaltante que o atacara com mais furor e conseguira feri-lo: parecia ser seu irmão, Roberto... Mas, na dúvida, não quis revelar isso a ninguém.
A polícia redobrou seus esforços e, poucos dias depois, capturou o chefe do bando, o qual foi sem tardança conduzido ao tribunal para ser julgado. Ao vê-lo, Guilherme não teve mais dúvida alguma: quem quase o tinha matado naquela noite era de fato Roberto, seu irmão! Longe de demonstrar arrependimento, este tentava apresentar-se seguro de si, ostentando modos insolentes.
Embora emocionado, o juiz não podia deixar de fazer justiça. Por seus inúmeros roubos, o salteador merecia longos anos de prisão; e pela tentativa de assassinato de um magistrado do reino, a lei era bem clara: o réu devia ser enforcado no prazo de três dias.
Na hora marcada para a execução, o condenado foi conduzido à praça principal da cidade, onde uma multidão estava à espera, desejosa de presenciar o fim do bandido que durante tanto tempo espalhara o pânico entre os pacíficos habitantes da região.
Triste espetáculo aquele! Rodeado de guardas e bem amarrado, o infeliz se arrastava em direção ao patíbulo. Sua atitude, porém, parecia mudada. A proximidade da morte o fez refletir sobre a loucura da sua vida de vício e de crimes. Uma expressão de dor e arrependimento desenhava-se em sua fisionomia, e seus lábios moviam-se silenciosamente. Estaria recitando alguma oração aprendida na infância?
* * *
O lúgubre cortejo chegou, enfim, junto à forca. Já o carrasco fazia os últimos preparativos para a execução quando uma mulher, derramando abundantes lágrimas, fendeu a linha dos soldados, lançou-se ao pescoço do criminoso e o cobriu de carícias. Nenhum guarda ousou afastá-la, pois todos perceberam tratar-se da mãe do condenado... e do juiz!
Aquele bandido era o filho por quem ela chorava e rezava havia tantos anos. Quanta dor naquele reencontro! Roberto achava-se sob o peso de uma sentença pronunciada por seu próprio irmão... Dentro de alguns instantes a desolada viúva perderia para sempre o filho. Seu coração jamais suportaria que em sua presença se consumasse a execução! Correu ao tribunal, prostrou-se aos pés do juiz e suplicou graça para o condenado. Ante a veemência dos rogos maternos, Guilherme deixou-se comover: “Minha mãe, a ti nada posso negar!”
Isto dito, dirigiu-se com ela apressadamente até o local do suplício. O trágico espetáculo ia já chegando ao fim: o bandido estava com a corda no pescoço, em um instante estaria pendurado e seu corpo sem vida seria o mudo testemunho da justiça executada.
O juiz adiantou-se, mandou desamarrá-lo e, apresentando-o à multidão, declarou: — Quando este homem compareceu diante de mim para ser julgado, não o olhei como meu irmão, mas como criminoso. Sobre ele pesavam duas sentenças distintas: longos anos de prisão, por roubos e violências; e pena de morte, pela tentativa de assassinato. Quanto à primeira, eu não podia transigir. Com relação à segunda, sim, pois uma excepcional circunstância fazia de mim, ao mesmo tempo, o ofendido e o juiz. Contudo, não usei de condescendência, por entender que o bem comum e o exemplo da justiça deviam prevalecer sobre o amor fraterno. Mas um coração materno fez-me uma pungente súplica à qual não posso ser insensível. Entre a justiça implacável e a gravidade do delito entrou o timbre suave da misericórdia. Como poderia eu deixar de atender um pedido vindo de tal advogada? Este homem — meu irmão — terá de pagar no cárcere o mal que fez à sociedade, mas a intercessão materna salvou-lhe a vida.
* * *
Na verdade, o dramático episódio narrado nestas páginas é apenas uma pálida imagem da situação de cada um de nós. Por nossos pecados, quantas vezes nos tornamos merecedores das punições de Deus! Temos, porém, no Céu uma intercessora incomparavelmente mais poderosa e cheia de misericórdia que a pobre viúva desta história. Por meio de seus rogos, Nossa Senhora pode alcançar-nos de seu Divino Filho o que Ele, por sua justiça, não nos concederia. Com filial alegria, tenhamos, portanto, uma confiança sem limites em sua intercessão, pois Ela a justo título é chamada a “Onipotência Suplicante”.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

O GRANDE PREGADOR

Frei Anselmo era inteligente e preparava seus sermões com esmero. Por onde passava, ia ficando um rastro de conversões e reafervoramento. Um dia, entretanto, suas palavras deixaram de ter efeito nas almas. O que teria acontecido?
 Anselmo e Mário, dois grandes amigos, não podiam ser mais diferentes um do outro, no que diz respeito aos dotes da natureza. O primeiro era talentoso, elegante, rico e de boa família. O segundo, pobre e apagado. Entretanto, por cima de todas essas diferenças, algo os unia estreitamente: ambos eram grandes de alma.
Naquela manhã de domingo, Anselmo comunicava a seu amigo que estava de partida para ingressar como noviço no Convento de São Domingos.
— Quero ser pregador, como bom filho de São Domingos, para converter muitas almas a Cristo e divulgar a devoção do Santo Rosário.
Embora triste, por ver romper-se um convívio de muitos anos, Mário felicitou seu amigo e o incentivou a seguir avante naquela sublime vocação.
— Ficaremos sempre unidos pela oração. Rezarei muito para que sejas um grande pregador santo — respondeu, dando ênfase ao adjetivo santo.
Poucos meses depois, Mário conseguiu um meio de alojar-se também no Convento de São Domingos, onde prestava pequenos serviços à comunidade. E... de vez em quando conversava um pouco com seu estimado amigo, ao qual repetia sempre:
— Rezo sem parar para que sejas um grande e santo pregador!
Chegou, enfim, o esperado dia da ordenação sacerdotal de Anselmo. Seu primeiro sermão arrebatou e comoveu os fiéis. Desviando de vez em quando o olhar dos assistentes, o pregador via Mário num canto da igreja, desfiando discretamente as contas de seu Rosário. “É por mim que ele está rezando!” — pensava, agradecido.
Ao cabo de poucos anos, Frei Anselmo tornou-se um pregador famoso. De todas as partes vinham-lhe solicitações de párocos e bispos.
Além de inteligente e culto, ele preparava com esmero suas pregações. E os bons efeitos eram atestados pelas numerosas conversões e surtos de reafervoramento espiritual em todos os lugares onde se faziam ouvir suas ardorosas palavras.
Mário continuava no convento, onde passou a ser chamado de “Irmão Mário” pelos monges. Homem jeitoso, ele conseguiu um meio de acompanhar Frei Anselmo em todas as viagens, para “cuidar de suas coisas”. E — detalhe curioso! — não perdia um sermão sequer. Lá estava sempre ele, com seu grande Rosário nas mãos, rezando, rezando...
Mas, como fazia Frei Anselmo para arrebatar e converter as multidões?
Numa Sexta-Feira Santa, o Bispo o encarregou de fazer a homilia sobre a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. Na Catedral apinhada de fiéis, todos ouviam atentamente. Chegando ao ponto em que o Divino Redentor inclinou a cabeça e expirou, ele fez uma pequena pausa, depois disse estas simples palavras:
— E Deus morreu!...
O respeitoso silêncio foi quebrado por soluços, em muitas faces corriam as lágrimas. A divina tragédia do Filho de Deus morto na Cruz tocara a fundo os corações.
Em outra oportunidade, era noite de Natal. Depois de compor cuidadosamente, na imaginação de seus ouvintes, a cena viva da Gruta de Belém, o grande pregador chamou a atenção para o transcendental acontecimento que ia se dar naquele momento e acrescentou:
— Então, o Filho de Deus se fez Menino e pousou sorridente nos braços de Maria!
Houve na igreja uma explosão de alegria. A emoção tomou conta de homens e mulheres, crianças, adultos e anciãos. Daqueles corações subia para o Deus Menino uma onda de ternura, de afeto e de adoração.
Mais alguns anos decorreram, ao longo dos quais cenas como essas eram habituais na movimentada vida de Frei Anselmo. Por onde ele passava, ia ficando um rastro de conversões, de mudança radical de vida, de fervor renovado.
Até que um dia... Sim, em certo dia de grande solenidade, o famoso pregador subiu ao púlpito e pronunciou as primeiras palavras do sermão enquanto olhava maquinalmente para o local onde costumava colocar-se o bom Irmão Mário. O lugar estava vazio. Onde estaria ele? — perguntou-se, preocupado.
Mas, enfim, Frei Anselmo tinha de preocupar-se com a homilia. Seguiu, pois, em frente. Como sempre, as ideias se formavam com toda clareza em sua mente e suas palavras límpidas e claras ressoavam pela vastidão do imenso templo. Mas — coisa estranha! — nas almas elas não ecoavam. Esforçou-se mais o pregador, pondo em jogo os imensos recursos de sua arte oratória para mover aqueles corações a uma atitude interior de fé e de piedade... Em vão!
O que teria acontecido?
Terminada a Missa, Frei Anselmo retornou ao Convento e perguntou ao porteiro:
— Onde está o Irmão Mário?
— Faleceu há cerca de meia hora. Seu corpo está na cela, ainda quente.
Após rezar junto ao corpo sem vida de seu velho e fiel amigo, o pregador quis saber o motivo dessa morte, tão inesperada para ele. O Padre Reitor explicou-lhe:
— Nos últimos meses o Irmão Mário dava indícios de estar gravemente enfermo, mas se recusava a descansar, alegando sempre que precisava “cuidar das coisas do Frei Anselmo”.
— Mas, o que mais fazia ele?
— Muitas orações! Rezava incansavelmente. Quando alguém lhe perguntava para quem eram tantas orações, ele respondia apenas: “Nossa Senhora sabe”.
— Ele era um santo — comentou Frei Anselmo, comovido.
— E muito...
O grande pregador continuou sua vida de intenso apostolado, mas sentia que tinha havido uma grande e inexplicável mudança. Preparava com o máximo de esmero seus sermões. As palavras fluíam-lhe dos lábios com abundância e clareza. Os fiéis o escutavam com agrado. Porém, não davam demonstração alguma de contrição, nem de fervor.
Algo havia desaparecido. O que seria?
Na Missa solene da festa de São Domingos, Frei Anselmo falava... falava... para ouvidos atentos mas corações fechados. Em certo momento, calou-se, como que tocado por uma visão, e começou a empalidecer. Alguns assistentes o ampararam e levaram para a sacristia. Ali mesmo, ouviu de um médico este diagnóstico:
— Estafa grave, Padre. O senhor precisa mudar de ares, repousar.
Esboçando leve sorriso, Frei Anselmo respondeu:
— Não... Não, nada disso! É ele... com suas intermináveis orações! A causa de todas aquelas conversões era ele, meu pobre amigo! Levem-me ao túmulo do Irmão Mário.
Lá chegando, o famoso pregador chorou longamente, humilhado, sim, mas convertido. Afinal, iluminado pela graça, havia compreendido que todo o êxito de seus sermões se devia, não à sua brilhante oratória, mas às fervorosas orações do humilde Irmão Mário.
Como uma benfazeja torrente de luz, vieram-lhe à mente as recordações de seus estudos sobre o indispensável papel da graça para mover as almas à conversão. Sim, os discursos mais lógicos, mais brilhantes são incapazes de suscitar qualquer bom movimento de alma. Quem converte é Deus, pela graça. E esta se obtém pelas orações, através da Virgem Santíssima.
Agora Frei Anselmo via com clareza a importância do Irmão Mário, o simples, o apagado... o poderoso Irmão Mário! Permaneceu durante várias horas diante do seu túmulo, rezando serenamente. Aproximando-se dele, o Padre Reitor lhe perguntou:
— Então, pedindo ao bom Irmão Mário o restabelecimento da saúde?
— Não, Padre Reitor, pedindo a virtude da humildade! — respondeu o grande pregador, levantando o rosto marcado pelos sulcos das lágrimas.